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Crédito: Filippo Croso
O naturalista Auguste de Saint Hilaire não economizou elogios aos Campos Gerais, quando os cruzou no início dos anos 1800 em sua longa jornada de reconhecimento do patrimônio natural e cultural do Brasil daqueles idos. Não foi só uma questão de alívio por ter deixado para trás as florestas densas, úmidas e que facilmente poderiam servir de palco de emboscadas, seja dos indígenas ou de animais ferozes. Para quem atravessa centenas de quilômetros selvas quase impenetráveis, ora trilhando a pé, ora embarcado em canoas, descendo rios caudalosos, ou ainda no lombo de mulas, transpondo distâncias em rústicos caminhos pavimentados com pedras arrancadas do leito dos rios, de fato, passar a percorrer uma extensa faixa de campos, é um suspiroso alívio. A visão alcança horizontes mais distantes, infindáveis, emoldurados por um sol descendente e ruborizado. Um sol anunciador de uma noite provavelmente fria, de puxar um poncho, de se acender uma fogueira e de dormir sob a espinha dorsal da noite: o arco da Via Láctea!
E Saint Hilaire tinha muitos outros motivos para desfrutar prazerosos dias entre as terras de Jaguariaíva, Castro, Tibagi, Ponta Grossa, Palmeira… Um deles era o acolhimento nas fazendas que naquela época praticamente assinalavam a fronteira entre o que chamavam de “civilização” e o que era pejorativamente denominado de “terra de bugre”. As fazendas funcionavam como pequenas fortalezas – uma delas, cheia de histórias e magia, até tinha esse nome: “Fazenda Fortaleza” -, faziam também o papel de atalaias, sofrendo ataques dos nativos, guardava também paióis de armamentos e eram pontos de partida para pequenos regimentos, muitas vezes, improvisados com jovens e adultos pegos a laço na região, quase sempre caboclos, que partiam – às vezes não voltavam – para o “desbravamento” dos sertões. Desbravamento dos sertões significava estender as fronteiras concretas da colônia e, de quebra, o extermínio de populações ditas “ariscas”, que defendiam com garra as suas terras e o seu modo de vida.
Porém as paisagens vislumbradas por Saint Hilaire há duzentos anos era e continua sendo deslumbrante.
Foi esse cenário que me chamou nesse final de semana, grifado por um convidativo dia que amanheceu ensolarado, absolutamente azul. Ou melhor, um céu azul de barras empoeiradas. A falta de chuva tinge o horizonte de pó alaranjado e o Sol ou a Lua quando ousam-no cruzar, esses se avermelham em toda as suas circunferências.
Juntei a turma de casa e em cerca de uma hora lá estávamos na porta de entrada dos Campos Gerais: São Luís do Purunã, junto à escarpa do mesmo nome. Ou, se preferir, uma nomenclatura mais acadêmica, então toma lá: a Escarpa Devoniana. Há trezentos milhões de anos aquela areia toda que hoje compõe as esbranquiçadas, meio esfarelentas rochas areníticas era fundo de um mar. O mar que batia nas nossas costas ocidentais. Certa ocasião, numa aula de campo com uma turma do Segundo Grau, como chamávamos na época, que participavam de um curso de Paleoambientes do Paraná, paramos o ônibus no acostamento e desembarcamos sobre a laje arenítica. O ambientalista e geógrafo, grande mestre da ciência ao vivo, das montanhas, cascatas e cavernas, o Darci Zakrzewski, logo nos apontava os rastros deixados por pequenos crustáceos que habitaram esse mar nos tempos – que eles não sabiam, caso soubessem em nada mudaria – devonianos, um capítulo um tanto longo de uma era chamada de paleozoica.
Não muito longe dali, próximo à imagem de Cristo, fica a capelinha colonial do Tamanduá. Saint Hilaire se referiu a ela. E ela continua lá, de pé, em seu esqueleto de pau a pique e carne de adobe. A igrejinha em meio ao campo de verde claro, pincelado em tons mais escuros e aveludados nos capões de pinheiros e nas matas ciliares, mais alguns canyons riscando a superfície aqui e ali. Visão bucólica que mergulha numa cratera profunda, numa furna arenítica. As furnas, essas formações tão bem estudadas pelo querido professor Olavo Soares, doutor em Campos Gerais – e em saborosas histórias que nós, abençoados alunos que fomos, não queríamos que terminassem.
Esses flashes de lembranças vieram a completar meu desfrute de um passar de tarde, lânguido, como deve ser, para frear um pouco o acelerador de ritmos de nosso dia-a-dia. As crianças ora passeando sobre os cavalos ora na garupa da bicicleta com a qual eu pedalava, ou ainda refrescando os pés e a alma no riacho, desfiado, resistente a quinze dias sem chuva, saltitando os degraus de arenito. Saint Hilaire estava certo: ê paraíso na Terra!

Chicho, 15 de Setembro de 2013.